Os meus avós em Olhão nos alvores do século XX

 



No início do século XX, Olhão encontrava-se num momento de transição acelerada, quase febril. O século XIX encerrara com a conquista de uma prosperidade nova, assente em dois pilares: o mar e a indústria conserveira. Estes dois elementos iam redefinir o tecido social e económico da vila, e é dentro desse ambiente que Francisco Lourenço Castelo e Maria da Alegria terão construído a sua vida.

O porto de Olhão era, literalmente, o pulmão económico. Nas madrugadas, a barra fervilhava. Das cabanas e ruas estreitas acorriam pescadores com as suas artes, preparando a saída para o mar. Ao longo do dia, as embarcações chegavam carregadas de sardinha, atum, cavala ou polvo, consoante a estação. O cheiro forte da salga e da lota impregnava o ar.

É provável que Francisco Lourenço Castelo, como comerciante e industrial, mantivesse ligações diárias ao porto, vigiando a chegada das pescarias e assegurando que a matéria-prima chegava rapidamente à fábrica. Se não ele próprio, alguém a seu mando o faria.

A economia de Olhão era imprevisível, dependente do temperamento do mar. Um ano de abundância podia significar expansão; um ano fraco podia comprometer investimentos.

A partir de 1900 Olhão cresceu continuamente graças à expansão das conservas de peixe.
As técnicas modernas de esterilização, trazidas do estrangeiro e adaptadas por industriais algarvios, transformaram a vila num polo produtivo de relevância nacional.

As fábricas empregavam sobretudo mão-de-obra feminina, célebre pela rapidez e destreza no manuseio do peixe, mas também mal paga e obrigada a horários extensos, ditados pelo ritmo da chegada das embarcações. Estas unidades fabris funcionavam como pequenas comunidades, onde se cruzavam mulheres do povo, mestres conserveiros, soldadores, estivadores, serralheiros, e crianças encarregadas de tarefas menores.

Para Francisco, este mundo era simultaneamente negócio e responsabilidade social: qualquer industrial disciplinado devia manter a fábrica preparada, negociar com exportadores e lidar com a sazonalidade imprevisível.

O comércio da cortiça, essencial para rolhas, boias, acondicionamento e embalagens, complementava a indústria de conservas. Empresários com visão compravam cortiça no interior algarvio ou alentejano, transformavam-na localmente ou revendiam-na aos mercados industriais. O meu avô, como comerciante de cortiça, estaria assim numa dupla frente: ligado ao sector primário e artesanal da cortiça, com contactos que ultrapassavam a vila, e conectado à indústria conserveira, que consumia materiais e serviços diversos. Embora nos períodos de maior actividade industrial tivesse reduzido substancialmente a actividade do comércio da cortiça, este duplo papel garantia-lhe um lugar na pequena burguesia industrial, a qual teria alguma capacidade de influenciar decisões locais.

Olhão era uma comunidade profundamente marcada por tradições marítimas, com procissões ligadas a Nossa Senhora do Rosário e do Carmo; festas de Verão associadas ao mar; rituais da faina e superstições marítimas; e convivência intensa em tabernas, mercados e armazéns.

A pequena burguesia frequentava também clubes recreativos, sociedades musicais e cafés onde se discutia política, sobretudo nestes anos de grande instabilidade nacional, com o fervor republicano a crescer. Em Olhão, que foi vila progressista e anticlerical em certos sectores, é plausível que o meu avô se movesse entre círculos que acompanhavam estas mudanças.

A habitação do casal seria uma casa típica olhanense, com paredes caiadas, cobertura em açoteia, platibandas decoradas e divisões simples, mas bem ordenadas. O mobiliário, de madeira escura, era sinal de um certo conforto, e as fotografias formais como a que mostra os meus avós seriam uma demonstração de estatuto e modernidade.

As mulheres desta classe social desempenhavam um papel central na administração doméstica e na educação dos filhos, prestando também um apoio discreto, mas essencial às actividades comerciais dos maridos. Nelas assentava a manutenção de laços familiares e de solidariedade, fundamentais numa vila onde todos se conheciam.

Não sei se as roupas elegantes da fotografia sugerem que Maria da Alegria vinha de família com alguma posição, ou se documentam o seu enlace com o meu avô; sei apenas que era natural de Celorico da Beira, onde nasceu em 1889.

Quando o casal contraiu matrimónio o mundo estava a mudar rapidamente: a República aproximava-se (1910), as fábricas multiplicavam-se e a partir de 1925 formariam o centro conserveiro mais importante do Algarve; os caminhos-de-ferro começavam a ligar o Algarve ao resto do país; a classe média emergia lentamente no litoral algarvio, e a fotografia de estúdio tornava-se símbolo de modernidade.

O casamento não era apenas uma união familiar, era também um acto de afirmação social, uma forma de mostrar respeitabilidade e pertença ao estrato industrial-comercial da vila.

Os meus avós, Francisco Lourenço Castelo e Maria da Alegria, terão vivido os seus primeiros anos de casados numa Olhão vibrante, industriosa e transformadora. Ele, dividido entre o mar, o comércio e a fábrica; ela, pilar doméstico e guardiã da estabilidade familiar. Juntos integraram a geração que consolidou o desenvolvimento económico da vila e a preparou para a modernidade do século XX.

 

Fotografia de estúdio, provavelmente retratando o casamento dos meus avós, por volta de 1907-1908; animada por Inteligência Artificial.




 


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