Prédica feita pelo mui reverendo prior




«_Deus dixit Petro ubi sunt oves meæ; nescio, respondit autem Petrus_»

Deus disse a Pedro «que é das minhas ovelhas?» e Pedro respondeu «eu não sei d'ellas.»
Que bondade, que prudencia, que sabedoria, meus queridos irmãos, não devemos nós admirar em Pedro; que, mesmo no momento em que seu Divino Mestre lhe pergunta, onde estão as minhas ovelhas; responde com toda a delicadeza que não sabe d'ellas, porque essas ovelhas não estavam em estado de apparecerem perante o seu Senhor. Asneiras, meus caros ouvintes, eu não tinha esse genio, não sou mentiroso nem falso, não tenho papas na lingua, e se o Mestre me pergutasse, como a Pedro, onde estão as minhas ovelhas, eu logo lhe dizia sem mais cerimonia, foram pastar para casa do diabo, Senhor.
E com effeito, se Elle tivesse vindo hontem á noite perguntar-me pelas minhas ovelhas, que lhe havia eu de responder? Elle que recommenda tanto no seu Evangelho, que as ovelhas se conservem sempre separadas dos competentes bodes, o que teria Elle dito se visse essas mesmas ovelhas misturadas com os bodes, saltando uns em cima dos outros, e a fazerem gaifonas ao seu pastor!
Sim, amados irmãos, foi grande a balburdia, e ao aspecto de tal desordem, o amor pelo meu rebanho animou-se de um santo zelo e ardendo em fogo, corri de cajado na mão, para arrancar as minhas innocentes ovelhas das dentuças dos lobos encarniçados. Mas, ó dôr, ó desdita, ó patifaria! As minhas ricas ovelhinhas já não escutam a minha voz; já penetradas pelos agudos dardos d'aquelles diabos e inundadas pelos seus liquidos venenosos e seductores, estavam indoceis e levadas da breca. O meu cajado, outr'ora tão poderoso, não póde juntar senão um pequeno numero, que trago para o meu curral, onde as hei de ter fechadas e guardadas até que deem os fructos do seu arrependimento.
Mas vós, amados ouvintes, vós, os que fostes fieis, lamentae a desgraça de vossos irmãos; comportae-vos sempre bem, e tomae para exemplo esses grandes santos da antiguidade; menos um tal santo Agostinho, que, segundo izem, foi um grande pandigo, quando moço, e é por esse motivo que eu nunca vos fallo d'elle.
Fallemos antes d'aquelle santo Chrisologo, que diz que um cura é um sol, e os seus freguezes são uns átomos. Mas eu não sei que diabo de átomos vocês são! não me pagam a congrua, querem que os case de graça e ainda em cima dizem: «ora, estamos nas malvas para o _seu_ padre cura, elle não tem filhos para sustentar!» Vocês sabem la disso? Não sabem que nós outros padres, temos mais trabalho em os esconder, do que vocês em os fazer?...
Mas voltando á vacca fria, pensemos na vossa conversão, se ella é possivel. Julgo que a melhor maneira de o conseguir é fallando-vos das maroteiras que se fazem na freguezia. Por exemplo: o João da Canhota, regedor, sae á noite e se ha de vir ao sermão, vai-se metter em casa da Felicia do Frade, e não sae de lá senão de madrugada. Diz que vae tomar chá, mas imaginem os ouvintes que qualidade de chá elle não tomará...
Aqui não ha senão desordem e immoralidade. Immoralidade nos velhos, immoralidade nos moços, immoralidade nos grandes, immoralidade nos pequenos. Digo immoralidade nos velhos, porque esses velhos, raça damnada de Caim, depois de haverem passado toda a vida... em patuscadas e pandigas, ainda mesmo arrumados ao bordão e de cabeça calva, se vão metter em logares suspeitos! Infames velhos de Suzana! quando é que lhes acabarão as fúrias carnaes e burriçaes? Immoralidade nos moços. Os rapazes e as raparigas andam por essas ruas aos beijos e abraços, cantando cantigas indecentes e immoraes; ainda eu hontem ouvi a filha do Thomaz da Horta e o filho do Ignacio do Dente a cantarem o Pirolito que bate que bate! Ora não ha maior pouca vergonha, uns fedelhos que ainda cheiram a coeiros e já sabem o que isto quer dizer! Immoralidade nos grandes. Esses mariolões e essas mocetonas que vão todos os dias para o matto, sob pretexto de que vão buscar lenha, e por fim fazem por lá couzas do arco da velha... Lenha no forno queriam ellas, malditas!
E quando vão aos figos! O que acontece? As raparigas sobem para cima das arvores e os mariolões ficam em baixo, a olhar para cima e a dizer: Olha Antonia vejo-te os calcanhares, e as pernas, e os joelhos, e o...
Ponham cobro a este escandal-o, amados irmãos, são couzas que se não devem ver senão em certas occasiões. Eu não pego aos rapazes e ás raparigas que vão ao matto e comam por lá o seu figuinho e mesmo que subam ás figueiras, mas para evitar indecencias, as raparigas fiquem debaixo e os rapazes que lhes vão acima. Immoralidade nos pequenos. Essa gaiatada miuda que anda todos os dias a correr pelo adro cá da freguezia, onde estão as campas dos nossos antepassados, e que depois vão fazer as suas necessidades mesmo á porta da sachristia. Se não teem respeito pelos mortos, tenham ao menos compaixão pelos vivos, não póde uma pessoa entrar na egreja pela porta de traz sem ficar a bem dizer atolado até o nariz. Já disse ao sr. regedor da freguezia que pozesse mão n'estas cousas, mas por ora continúa a mesma marmelada á porta da sachristia.
Tambem é digno de reprehensão o comportamento d'essas mulheres casadas, que sem nenhuma consideração pelos seus maridos, se levantam do leito conjugal de madrugada, sob pretexto de levarem o gado ao campo, e depois de andarem lá por fóra a laurear, em pernas, recolhem-se para casa frias de neve, e vão-se outra vez metter na cama com os maridos e arripial-os sem piedade! Pobres homens! Se fosse comigo, que coça que ellas não levavam...
Tambem ha certa moça cá na freguezia, que eu trago d'olho ha dias, cá por certa cousa. Eu devia já dizer quem é, mas emfim por hoje limitar-me-hei só a mettel-a na sachristia e arrumar-lhe um lembrete... domingo direi quem é, se não tomar juizo... por agora saibam unicamente que é a unica na freguezia que usa ligas encarnadas... (_Pausa, rumor na egreja._)
Domingo, de hoje a oito dias, me alargarei mais sobre os homens, coçarei as mulheres casadas, e caírei em cima das solteiras, se não tomarem juízo d'aqui até lá. Sendo hoje dia de festa e estando a chuver far-se-ha a procissão só por baixo da egreja, pois eu não estou para apanhar alguma porrada d'agua. Não precisa vir toda a gente a ella, basta que de cada familia venha um varão.
A proposito de procissão, tenho a dizer-vos, amados ouvintes, que os santos cá da freguezia vão estando muito chimfrins. Eu não dava três vintens por elles. O São Miguel é que está assim mais direitinho, mas o diabo que está por baixo já não tem cornos; pois olhem, não ha na freguezia poucos homens ricos no caso de lh'os darem. O calvario também não está mau; todos os instrumentos da paixão estão em bom estado, falta-lhe só o gallo, mas a isso não direi nada, porque ha poucos na freguezia e as gallinhas precisam d'elles: no entanto se houver por ahi alguma dona de casa que tenha dois, que me mande para cá um.
Esta semana não ha jejum, podem comer tudo quanto quizerem e bebam-lhe melhor; ha só a bemaventurada santa rainha, que cura a tinha; é quinta feira, sexta feira ha feira e domingo é a festa de São Simão e São Judas. Tambem, não sei quem foi o diabo do animal que se lembrou de pôr Judas no calendario. Juro-vos, amados ouvintes, que se não fosse domingo não lhe fazia festa, era o que merecia o senhor S. Simão por caír na asneira de se ir metter com similhante tratante.
Mas acabemos com esta maçada. Ó _seu Zé_, accenda os sinos e mande tocar as vellas, accenda a agua benta e bote agua no thuribulo... não, enganei-me, faça o contrario de tudo isto. No entretanto façamos as nossas costumadas e ordinarias orações. Oremos pela conservação da nossa bemaventurada mãe catholica, apostolica e romana; pela _estripação_ da _cisma_ e abaixamento da hydropisia; oremos tambem pelos ricassos cá da freguezia, a fim de que Deus os mantenha na sua honesta pobreza; pois se fossem mais ricos punham-nos o pé no pescoço. Oremos pelos ausentes e pelos viajantes, afim de se deixarem por lá estar, se estão bem; oremos pelo feliz successo das mulheres pejadas, afim de que Deus lhes faça a mercê de largarem o fructo com a mesma facilidade e doçura com que o comeram. Oremos, n'uma palavra, pela conservação dos bens da terra, como salada, couves, batatas, pepinos e tomates, e pela extincção dos seus males, como formigas, lagartos, ortigas, pulgões e ratazanas... etc.
In http://www.gutenberg.org/wiki/

8 comentários:

Unknown disse...

transcrevo de Isabel Allende: «O escritor escreve do que tem dentro, do que vai cozinhando no seu interior e que vomita porque já não pode mais.»

éf disse...

Ora, viva, cara amiga Maria. As férias afastaram-na da net?
;)

Já ouvi antes essa afirmação, feita por outros autores ou críticos. E parece-me assertiva.
No caso deste texto é que não sei. Trata-se de um dos textos integrados num conjunto intitulado "Album chulo-gaiato ou collecção de receitas para fazer rir", de autor anónimo, disponível na base de dados do Projecto Gutemberg - Catálogo de Livros Online.

Há lá coisas interessantes, mas tem que se pesquisar com paciência.

Aqui deixo o endereço:
http://www.gutenberg.org/wiki/PT_Obras_e_Autores_Sugeridos_%28Portugu%C3%AAs%29/Portugal

Unknown disse...

não tenho férias, mas nem sempre os textos que vou lendo me sugerem ideias justas; neste caso, depois de vários dias, e pensando que era um texto teu (lembro-me de teres respondido a alguém referindo que tinhas o projecto de escreveres sobre tempos de descobertas, com linguagem arcaica ...), resolvi escrever isso, por defender que, o que é vivido, é melhor descrito

:)

éf disse...

Pois, de facto não é meu. Mas achei interessante replicar, e indicar a fonte, porque aquilo tem um manancial de material que merece ser explorado.

Concordo em absoluto com essa ideia de que o que é vivido é melhor descrito, mas isso coloca o problema das cedências e da exposição do eu do autor. Escrevi algures neste blogue (em post agora oculto, pois já cumpriu a sua função): “Tenho consciência de que na escrita uma realidade pode prolongar-se involuntariamente em ficção ou uma ficção pode ganhar estatuto de coisa real. Porém, essa fusão entre verdadeiro e fictício não me perturba. A liberdade de recriar o real misturando-o com o imaginário é, de todo, lícita. Por aí sigo, num exercício de construção literária que, se mais não alcançar, será uma experiência enriquecedora para quem tanta importância atribui ao acto de escrever.” Mas na verdade, ao afirmar “essa fusão entre verdadeiro e fictício não me perturba” não fui sincero. E é justamente por tal coisa me perturbar é que a escrevi, e repeti, numa tentativa vã de a incorporar. Mas as coisas não são assim tão simples. As vivências mais marcantes serão, porventura, aquelas que melhor poderíamos descrever mas, são, também, as que mais exigem em matéria de nos expormos aos outros. E isso nem sempre é fácil. Acho que aí reside um dos aspectos que distingue o escritor do outro que apenas escreve, assim como eu. E não digo isto com qualquer mágoa ou desilusão pois gosto é de escrever - mesmo sem saber exactamente o que significa ser escritor.
De facto, tenho em projecto uns contos de antanho, respeitando, tanto quanto possível, o vocabulário coevo. Porém, a experiência da publicação do primeiro exercício de escrita deixou-me na dúvida e agora, para o 2º exercício, estou indeciso entre contar coisas inéditas ou reescrever contos tradicionais, até universais. Assim, talvez fosse outra maneira de retirar importância ao conteúdo deixando o leitor mais atento à forma, à sintaxe, ao vocabulário, etc(não se veja aqui alguma fixação com os aspectos mais formais da escrita. Procuro apenas melhorar essa capacidade; e acho que com mais um exercício, que integre dois ou mais contos, encerro o ciclo dessas redacções mais centradas na forma de escrever.

Unknown disse...

reescrever temas alheios será bom para quem tem pouca imaginação; tudo tem o seu tempo e os enredos alheios pertencem, forçosamente, ao tempo em que foram criados; isso de temas universais...não se compadecem com os nossos relógios atómicos!
manual de cínicos: «Das duas uma, ou este homem está morto ou o meu relógio parou» - Groucho Marx dixit

éf disse...

Muito bem, haja quem defende a minha sede de "inventar". Só que vou continuar com a preocupação de melhorar a forma de escrever, embora agora mais atento ao conteúdo, pelo menos para que os "leitores" não se sintam tão defraudados (risos).

:)

Unknown disse...

porque é que não nos vais dando conta do andamento, das angústias [:) ] de um escrevinhador?
julgo que o feed-back poderia ser interessante, pois o 'público', sem conhecer o material, vai apenas comentando as tuas movimentações mentais...

manual de cínicos: o idealista é aquele que, verificando que uma rosa cheira melhor do que uma couve, conclui que também fará melhor sopa

éf disse...

o escrevinhador está de férias Maria. Em Agosto o trabalho não deixa disponibilidade para as brincadeiras. Lá para Setembro recomeço mas, antes, tenho um trabalho de "memória da história local" de um amigo, para rever.
Em todo o caso, o escrevinhador não tem agenda nem compromissos de calendário. Escrevinha apenas quando sente o formigueiro na ponta dos dedos (risos).
Quanto às angústias, são cada vez menos importantes. Ou porque regresso lentamente ao habitual desinteresse em escrever para os outros ou porque me vou enganando, pensando que já escrevo suficientemente bem. Não sei, ainda não reflecti sobre o assunto.

E tu, não escreves? Um manual de recomendações aos cínicos era capaz de ser coisa interessante... (risos).

;)