Cap. 36* - O Salário do Poeta



(…)
Os risinhos petulantes faziam-se ouvir na plateia, provenientes do balcão. Era o general, em palco, que suscitava tal galhofa devido ao seu chapéu e ao facto de trazer contratado um poeta que lhe haveria de fazer versos laudatórios. Assim o desejava, e esperava, o velho ditador, preso ao fio da vida pela recordação dos seus dias de poder, agora afrontado pelos fantasmas e medos que criou.
Era essa conotação com o poeta original, sentado no extremo oposto, lá em baixo, na plateia, que suscitava a mordacidade do grupo.
Pobres criaturas, crendo que a representação ocorria unicamente no palco. Ingénuas no saber de não serem mais do que marionetas, como os outros, suspensos nas cordas de quem, em cena, os faz representar. O teatro também é assim, mas o grupinho não suspeita sequer. Nem poderiam, pois não passam de leitores de Paulo Coelho, revistas cor-de-rosa e boletins astrológicos.
No palco, o diálogo dramatiza-se entre o poeta ajustado e o vil contratador e, lá em cima, nas últimas cadeiras, as insolências continuam, em voz sumida, quase murmúrio, receosa de ser escutada na plateia; seguida dos costumeiros risinhos contidos. Não fossem os microfones omnidireccionais colocados no auditório, justamente para registar os ruídos e observações da assistência e, de facto, nem seriam ouvidas...
Mais tarde, os actores haveriam de desgostar de tal atitude desrespeitadora do seu trabalho. – Gente gira, mas boçal. Diriam.
Nem tanto, diria eu. Se dissesse algo. Mas eu não estava disponível, entretido na observação das reacções aos produtos que introduzo no meu laboratório de cobaias: mais uns eléctrodos aqui, uma incisão lobotómica ali… continuam a mexer, e reagem. Bom sinal!
(…)


Excerto do Cap. 36 da prosa “cambra d’ar” (título provisório)

2 comentários:

TheOldMan disse...

Francisco de Blog, isso até me pareceu "Cyrano de Bergerac meet Paulo Coelho"; pelo menos se acabasse à espadeirada ganhariam os bons...

Abraço

;-)

éf disse...

Mestre, o Coelho nunca teria hipóteses contra o Cyrano. No mínimo este levaria, sempre, um nariz de avanço.
;)

Abraço.