Bolas de sabão



(…) A AllBall Inc. – Portugal Branch funcionava num velho edifício de seis andares, na baixa da cidade, junto ao porto. O edifício possuía, no rés-do-chão, uma enorme loja onde se vendiam todo o tipo de bolas, para as várias modalidades desportivas. Também ali estavam localizados, nas traseiras, voltados para a doca, os armazéns dos produtos que a empresa comercializava. Nos restantes pisos funcionavam os outros serviços da sucursal da marca norte-americana.
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A mando do Administrador-Geral, o chefe colocara-o em “isolamento”, avisando as funcionárias dos vários departamentos que não se deixassem fotografar para os calendários e catálogos de brincar que ele fazia – montando meticulosamente os rostos das colegas ao lado das estrelas das várias modalidades desportivas –, e que as jovens tanto apreciavam.
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O chefe assemelhava-se fisicamente à personagem de comédia britânica mr. Bean. Comportamental e psicologicamente era mais ao género da personagem Waylon Smithers, o solicito assistente de mr. Burns da série animada “Os Simpsons”, sempre a lamber os sapatos do patrão e o chão que este pisa. Obedecendo cegamente às instruções superiores o chefe reduzira-lhe as solicitações de serviços atenuando, consequentemente, o seu volume de trabalho.
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As secções que funcionavam ao lado do seu estúdio foram mudadas para outras dependências vazias, ou mal ocupadas, do enorme casarão. Assim, viu afastar-se a Secção de Controlo de Vendas e a de Informações em linha. Até a arrecadação da limpeza foi deslocada para outra ala do edifício. Isolamento, era a estratégia adoptada. Porém, não se tratava de um castigo por falta cometida. Era, antes, corolário da acção insidiosa de que fora alvo e contra a qual se revoltara. E essa revolta, revelada incómoda, havia que silenciar. A perversidade do poder ganhava.
A partir de então passou a ter por único vizinho, numa sala contígua, um símio que ouvia rádio, gritava e dava murros na parede quando os jogadores do F.C.Porto falhavam os remates, não se sabe se de contentamento ou irritação.
Não satisfeitos com o degredo ainda faziam inspecções periódicas ao local de trabalho, inquirindo sobre a sua ocupação, acerca do uso dos utensílios e ferramentas do seu mister, da quantidade de água que consumia, ou das folhas de papel que gastava. Um dia, chegaram a medir a quantidade de pigmento existente num tinteiro da impressora, não fosse andar a imprimir coisas não autorizadas.
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Dado como mentalmente afectado, não só foi proscrito profissionalmente como tentaram afastá-lo do convívio social habitual. Até à professora dos tempos da primária fizeram chegar a mensagem de que não andava bem, e que ela nem devia continuar a responder aos postais que sazonalmente trocavam, dando conta da saúde dela e do sucesso dele, resultado de uma longa amizade começada, justamente, nos bancos da escola.
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Já não ia tantas vezes ao exterior para sessões de fotografia artística com as sorridentes modelos que apresentavam os produtos. Agora, ocupava-se de trabalho mais individual, mais técnico, registando os produtos novos – igualmente para os catálogos oficiais da marca –, ou aplicando os seus conhecimentos de metrologia na verificação das dimensões, volumes e capacidades das mais variadas bolas.
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Deixou vaguear o olhar pela sala. Na sua frente um poster com um gigantesco hemisfério seccionado prende a atenção pelas palavras coloridas de formatos variados: Pelota, Ball, Bal, Ballon, Palla, Pilka, Boll, Pilota, Pallo, Top, توپ , Топка. Bola, nos vários idiomas do mundo. Na parede posterior um armário exibe dezenas de bolas de futebol, desde as primeiras, com uma abertura por onde entra a câmara de borracha, a inglesa de couro do séc. XIX - ainda ostentando o tiento - até à mais recente Teamgeist, passando pela longa evolução das de cauchu e pela primeira totalmente sintética, a Azteca, estreada em 1986 no México, reviu Saltillo...
O toque do telefone suspendeu-lhe os pensamentos, e o resultado da breve conversa tida com alguém que desconhecia trouxe-lhe nova apreensão: porque diabos o andavam a aliciar com propostas de trabalho? Já na semana anterior recebera um e-mail da Finne e, agora, alguém que se dizia representante da Mikasa pretendia contratá-lo para um part-time! Que coisa tão estranha, sobretudo porque o seu contrato profissional não lhe permitia esse tipo de relacionamento com empresas concorrentes, e elas sabiam-no.
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Excerto de: “Cambra D’ar”

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