o Intelectual

Normalmente, apodar alguém de pseudo-intelectual, ou de se armar em intelectual, é uma manifestação de ignorância. É uma reacção de medo, receio dessa gente que parece viver noutro mundo, gente estranha que sabe dominar o discurso e o raciocínio. Que inventa coisas novas e propõe a destruição do status quo. E cria e destrói para criar de novo.

Gente que assusta os ignorantes, essa massa apedeuta que brota e pulula como larvas, multiplicando-se desmedidamente. Massa presente em todos os tempos, mas de quem nem se dava por eles, na inexistência da Sociedade da Comunicação. Agora, manifestam-se. Manifestam a sua medonha ignorância, a sua iliteracia e incapacidade mental. Exibem e reverenciam o materialismo do consumismo, e grasnam futebóis, bradam ídolos e desprezam a política – aquela que os explora diariamente, contente com o seu alheamento bacoco.

São horrorosos, e bem mais sórdidos do que aqueles miseráveis que a revolução industrial despejou nos bairros esconsos das grandes cidades do século XIX, andrajosos e famintos, pedintes de mão suja estendida. Estes, de vestimenta irrepreensível, cheirando a Denim Black e rasgado sorriso Pepsodent, são piores, são iletrados de carteira cheia – endividados ou não -, perigosos porque ignorantes. Não compreendem nem querem saber de lutas sociais, reivindicações de quem trabalha e exige o que minimamente lhe é devido, nem tampouco de qualquer estratagema artístico que exija reflexão. Não querem saber de análises, de julgamentos, de fiscalização dos actos públicos dos que nos administram. Não querem saber disso, pronto!

Admiram, e por vezes compram, a arte contemporânea mais instantânea, mas fazem-no apenas como símbolo de integração num determinado estrato social ou por ditame da moda. Não percebem que a Arte é, acima de tudo, ruptura - mas ruptura consciente -, é aviltação do espírito (até, insulto), é estímulo ao intelecto e convida à reflexão e à acção. Só depois disso tudo é que a Arte pode ser quietude, sossego da alma ou desprendida e despreocupada recreação.

Outra ideia errada, cultivada pelos ignorantes, é a que confunde um intelectual com um santo. Acham, os imbecis, que um intelectual tem de ser uma pessoa polida e bem educada. Quer dizer, não pode chamar “filho-da-puta” aos filhos de puta que pululam por aí. Ora, a maior parte dos intelectuais não perde tempo com burgessos, insultando-os, inclusivamente, se forem por eles incomodados. Tal como os artistas, afinal de contas. Eis dois grupos ligados pela sensibilidade e capacidade criativa, que jamais condescenderão com a massa ignorante. São cínicos, pois são. São ajuizadamente cínicos.

Entre essa massa de burgessos e uma outra menor, de gente lúcida que claudicou há muito das suas convicções e lutas (por acção dos receios que a sociedade moderna inventou e inculcou), restam uns outros, poucos, que vão, aqui e ali, oferecendo alguma resistência, demonstrando algum sentido crítico, alguma centelha de ser humano: irrequieto, inconformado, curioso, intrépido , e a quem a chusma acabará por apodar, com a carga negativa e injuriosa do insulto, por “Intelectual”, ou pior, sem sequer permitir o justo estatuto de quem usa o cérebro como ferramenta, “Pseudo-Intelectual”! A canalha é medrosa, sempre foi.

Há cinco ou seis meses atrás, no início de uma entrevista a uma personalidade cá do burgo, a minha colega fez uma daquelas perguntas formais: - Agora que está aposentado, qual é a sua ocupação no dia-a-dia? E o meu antigo professor de Francês respondeu: - Exploro reformulações do paradigma de sociedade em que vivemos: observo, questiono, relaciono, procuro respostas, reflicto, construo um modelo, e testo-o. Tudo em actividade mental. Trabalho com o intelecto, portanto sou um intelectual.

Aqui está. O Intelectual é corajoso, e começa por ter a coragem de se assumir como intelectual. Para os parvos, que não compreendem nada, será um vizinho armado em intelectual, ou seja um pseudo-intelectual.

Sem comentários: