FOTOGRAFIA
Uma Falsa
Reprodução do Real
“A fotografia é a realidade; não o que se passa
lá fora”
ironia de Vilém Flusser
A fotografia nasceu dotada de total credibilidade
satisfazendo a necessidade dos cépticos em “ver para crer”; tal era a
infalibilidade do olho mecânico. Ora o vínculo da fotografia
com a realidade resulta da sua capacidade de representar mimeticamente aquilo
que vemos, e por isso a aceitamos como prova do real. No entanto não deixa de
ser apenas uma interpretação desse real. Para além de constituir um ícone, uma
figuração, o medium fotográfico
impõe uma representação subjectiva do real. Portanto, não só é apenas uma
representação – e não uma reprodução –, como é uma representação subjectiva (com
tudo o que a subjectividade pode ter de ilusório), já que varia segundo vários
factores definidos pelo sujeito que opera a câmara.
Ao constituir uma escolha
permanente em que se fotografa algo de um único ponto de vista (o enquadramento
implica escolha), uma fotografia integra sempre rejeições ou exclusões. É, logo,
um exercício de escolhas. Trata-se de uma selecção arbitrária e por isso subjectiva
– obviamente, não me refiro a uma subjectividade resultante de manipulações
fotográficas.
Sobre este carácter não objectivo da imagem, Dubois
afirma que a Fotografia não é um veículo incontestável da verdade empírica; e
Susan Sontag alerta para o perigo especulativo da Fotografia, afirmando que as câmaras
estabelecem uma relação dedutiva com o presente e proporcionam uma visão da experiência
instantaneamente retroactiva. Já Roland Barthes é claro ao afirmar que a
fotografia é subversiva quando apela à reflexão; e pode induzir-nos em erro
devido à relação dedutiva que estabelece com a realidade. Mais do que isso,
espera-se que uma fotografia suscite na mente de quem a observa outras imagens
sequentes, que completem o mundo que ela, na sua singularidade, não pode
cumprir:
«Pretende-se que
a imaginação seja a faculdade de formar imagens. Ela é antes a faculdade de deformar as imagens
fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de nos libertar das
primeiras imagens, de mudar as imagens. Se não houvesse mudança de imagens,
união inesperada de imagens, não havia imaginação, não havia acção imaginante.
Se uma imagem presente não faz pensar uma imagem ausente, se uma imagem
ocasional não determina uma prodigialidade de imagens aberrantes, uma explosão
de imagens, não há imaginação (…) O valor de uma imagem mede-se pela extensão
da sua auréola imaginária.» Gaston Bachelard
Uma fotografia tem o direito, tem o dever, terá até a
obrigação de nos transportar para outra imagem, para outra ideia, que não apenas
a que graficamente representa. Humberto Eco reconhece essa diálise que a
fotografia estabelece com a mente do observador:
«…não se pode
recusar a riqueza de impressões e de descobertas que em toda a história da
civilização os discursos por imagem deram aos homens…» Humberto Eco
Eis a característica primária da fotografia, a
sua capacidade para produzir significado. O que vemos ao contemplar uma
fotografia não é o mundo mas apenas conceitos relativos ao mundo. A fotografia
condensa em si diversos níveis de significado que a vinculam a um determinado discurso,
e isso leva-nos para além da “realidade” que ela representa, para além dessa aparência
física que é puramente visual. A câmara fotográfica dá-nos a conhecer apenas os
aspectos visuais de uma realidade segundo um limitado e limitador enquadramento.
E essa construção de uma imagem está ainda sujeita às opções ideológicas e
estéticas, às escolhas de certos aspectos em detrimento de outros, por parte do
fotógrafo. Esta condição da fotografia torna-a inexoravelmente subjectiva mas,
claro, nem por isso menos interessante e valiosa.
«Se a
fotografia é considerada como um registo perfeitamente realista e objectivo do
mundo visível, foi porque lhe atribuímos, desde a origem, usos sociais tidos
por “realistas” e “objectivos”» Philippe Dubois
Num mundo em que as aparências têm especial
protagonismo e em que o meio visual ocupa lugar destacado na comunicação, não é
de estranhar a ingenuidade com que se confunde imagem com realidade, e no caso
da Fotografia este fenómeno é ampliado pelo facto das imagens fotográficas se
situarem entre o real e a sua negação, entre a realidade interna (interpretação)
e a realidade externa (observação). A fotografia, tal como a pintura, tem na
sua essência a criação de metáforas, de conotações, de analogias diversas,
convertendo objectividade em subjectividade. O real não é necessariamente
aquilo que nos é apresentado perante os olhos. A fotografia, ao exibir
“realidades” naturais, urbanas, humanas, sociais, absurdas, transforma-se em
mensagem de arte.
No universo das artes visuais não existe uma relação directa
entre fotografia e realidade. Se pensarmos bem, até mesmo os registos
fotográficos a que o fotojornalismo recorre não devem ser entendidos como reproduções
fiéis da realidade, como testemunhos inabaláveis de que aquilo aconteceu tal
como a fotografia mostra.
Várias teses despontaram ao longo do séc. XX postulando a
transformação do real pela fotografia; denunciando a impossibilidade de tomar
a fotografia como mimese, como um
espelho, da realidade. Tais teses sustentam que a fotografia é um instrumento
de interpretação, um código cultural no qual não existe neutralidade e que
encará-la como reprodução da realidade não passa de ilusão ou ingenuidade.
Senão vejamos:
- o fotógrafo escolhe um ângulo de
visão e organiza a imagem;
- o fotógrafo isola um ponto
preciso do espaço-tempo, excluindo os demais elementos do contexto;
- o significado da mensagem
veiculada na foto é determinado culturalmente;
- a foto é ilustração de um
conceito previamente estabelecido na imaginação do fotógrafo;
- a foto possui conteúdo
ideológico; etc.
Entendida ora como espelho, ora como instrumento de
transformação do real, ora como traço do real, a fotografia é, antes de mais,
uma visão do mundo. Uma opinião que o fotógrafo expressa através das
suas escolhas. Ao enquadrar, decide que parte da realidade vai mostrar e
que parte vai esconder. Ao clicar, impõe o exacto momento que será eternizado.
Em termos de “reprodução da realidade” vejamos que
realidade pode a fotografia reproduzir na maioria dos casos. Suponhamos que um
grupo de pessoas de Lagos, de diferentes condições socioeconómicas e profissões
diversas costuma ir à pesca numa traineira, mas que só o fazem uma vez por mês
- nos outros dias trabalham nas suas profissões e tratam do seu quotidiano – e
que numa dessas pescarias se fazem fotografar em grupo. A realidade
registada, a ida à pesca, é uma excepção, então enquanto registo testemunhal (caracterizador,
p. ex.) da vida dessas pessoas, em que medida essa fotografia pode ser tida como
realidade? Como seriam vistas, compreendidas, as pessoas deste grupo, por
observadores estranhos, forasteiros, a quem apenas fosse facultado este registo
fotográfico?
«A fotografia é uma representação elaborada cultural, estética e
tecnicamente, e não pode ser compreendida isoladamente, desenquadrada do seu
processo de criação» Boris
Kossoy
Provavelmente a maior falsidade da fotografia provém desse
isolamento, do recorte do assunto em relação ao mundo circundante e à realidade
– que é infinitamente mais abrangente e complexa. O mero recorte já é falso por
via dos efeitos de achatamento ou de inclusão excessiva de elementos resultantes
das diferentes distâncias focais da teleobjectiva ou da grande angular.
Essa opção entre aquilo que será fotografado e aquilo que
não será, de como será representado, mais ou menos perto, achatado por uma teleobjectiva
ou alargado por uma grande-angular, mais iluminado ou mais escuro consoante a
exposição, colado ou não a outro elemento pelo ângulo escolhido, todas essas opções
criam a mensagem da imagem produzida. E isso é um processo artificial que na
esmagadora maioria dos casos nem sequer é percebido pelos fotógrafos, que
acreditam que estão simplesmente a registar o mundo tal como é. Também raramente
é percebido pelo observador; esse compra a imagem acreditando piamente no mito
da fotografia-verdade. Ora essa artificialidade é a mentira que usamos para
contar algo ao observador, a esse observador que não pode conhecer as
circunstâncias em que a fotografia foi realizada. Mentimos, para contar
uma verdade impossível de registar por uma hipotética (e quimérica) captura
neutra.
«A fotografia maravilha-nos com a verdade e
confunde-nos com a mentira. Por isso tenho dificuldade em escolher entre a
verdade e a mentira...» Luís Miguel Gonçalves
7 comentários:
A verdade é que se alguém quer conversar, à séria, de coisas sérias não deve escolher a esplanada (facebook). Esqueço-me, amiúde, da incompatibilidade (natural) entre cerveja/tremoços/arrotos e diálogo/tino/raciocínio.
Aqui é que se está bem. Por si, o silêncio é solene.
Em si, o silêncio é solene.
Nem mais, mas na ânsia de comunicar esquecemo-nos dessa natureza evidente do facebook (e de todas as redes sociais). E às vezes ainda caio no erro de responder a quem, neuroticamente, insiste em ter opinião sobre tudo - e opinião autorizada -, e depois, claro, recuo cansado com o tempo perdido em diatribes improdutivas.
Abraço.
Bachelard!
a fotografia é capturada duas vezes: pelos interesses açambarcadores e por coisa mais fina e indefinível que nos acompanha e que é a derradeira consolação que nos resta.
ainda não vi o que era o facebook e agora que sei que pertence à goldman sachs cada vez maior a certeza que nunca farei a experiência.
saúde.
deixemo-nos de ilusões meu caro Deodato, tudo pertence à "goldman sucs", até a mata de Barão :D
Quanto ao Facebook é eminentemente uma plataforma para publicidade e propaganda, mais jogos dedicados à atrofia mental e lixo, muito lixo informativo. Quanto a este último aspecto não difere me muito das televisões e dos jornais pelo que a cautela é necessária, quando aos outros aspectos, desliguei os jogos e a possibilidade de participar em acções massivas. à publicidade que corre em barra lateral não ligo, ás vezes entretenho-me a classificá-la como SPAM desorientando o anunciante e o sistema do FB... hehehehe. Portanto, resta-me o uso útil de partilhar coisas minhas com os meus 100 subscritores de confiança (vulgo "amigos"), e rir-me dos dois ou 3 que lá estão apenas para produzir humor refinado. Tudo o mais é como na selva do quotidiano palpável e tridimensional... evitar escolhos fazendo escolhas. Abraço.
caro francisco: obsessões à margem, consideraria de quase delituoso se você não proporcionasse ao maior número possível de leitores este excelente trabalho fosse no facebook fosse onde fosse.
dei-me conta se alguém me perguntasse sobre bachelard que não conseguiria juntar duas palavras e no entanto ele está presente nas coisas que alinhavo,quer ver? abro ao calhas l'Air et les Songes pág. 108 e o que me salta aos olhos: l'irréel commande le réalisme de l'imagination.
uma das interpretações a que me atrevo:a imaginação é já de si irreal mas o pouco de real que produza é comandado pelo irreal.
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