O braço longo da História
M. Fátima Bonifácio – Historiadora - 22 de Abril de
2020 – Jornal Público
Na UE, a cisão Norte/Sul, patente nas crises de 2007-8
e na actual tremenda crise do coronavírus, não deriva da petulância
“repugnante” do ministro holandês nem da falta de caridade da Senhora Merkel.
Tal cisão tem raízes ancestrais e, de certo modo, naturais.
Europa do Norte e Europa do Sul: duas
Europas que se defrontam em época de crise. Foi assim em 2007/08. Volta a ser assim em 2020. Não. Não é por causa da
Senhora Merkel e dos alemães; não é por causa dos holandeses e do seu “repugnante” ministro das Finanças que actualmente representa a Holanda no Eurogrupo. Ou melhor, será por
causa disto tudo e mais alguma coisa, mas a cisão da Europa entre Norte e Sul
tem raízes seculares.
Há muitos e muitos anos, há décadas,
aprendi com Marc Bloch que o rio Loire, que atravessa a França de Leste a Oeste
– nasce no Sul, próximo de Grenoble, mas rapidamente sobe até Orléans, vira a
90 graus para o Oeste e desagua no Atlântico –, era um separador entre
duas civilizações agrárias. Esta separação residia numa diferença decisiva do
tipo de solo agrícola: a Norte do Loire, a terra era úbere, pesada e húmida; a
Sul, e até ao Mediterrâneo, era seca, leve, arenosa e cheia de pedregulhos.
Este facto geológico determinou destinos diferentes. Os terrenos nortenhos eram
mais produtivos, mais férteis e, sobretudo, mais propícios à cultura
cerealífera; os terrenos do Sul eram áridos, avaros, pouco produtivos e
próprios para arbustos ou algumas árvores como as oliveiras ou os sobreiros;
eram terrenos onde a cultura cerealífera não florescia. Naquela época, em que a
fecundidade da agricultura era determinante da riqueza ou da pobreza, o Norte
já era mais rico do que o Sul.
Esta imensa brecha geológica, que, só
por si, garantiria ao Norte um retorno agrícola mais farto, determinou opções
técnicas que ditaram formas de organização social diversas. Estamos algures no
século XIV, que apropriadamente foi canonizado como a primeira revolução
agrícola da nossa era. A Norte do rio Loire, foi introduzida a charrua como
instrumento de arar: o solo, pesado e húmido, como se disse, era maleável,
adaptava-se bem às passagens, repassagens e revolvimento da terra, destinados a
promover a sua fecundidade; sobretudo, as charruas, puxadas a bois ou a
cavalos, aliviavam o esforço humano e não exigiam uma perícia por aí além.
Mas as charruas não eram um instrumento
ideal para os solos mediterrânicos, a Sul do Loire, secos, arenosos e
pedregosos. Aqui, o antigo arado exigia mãos muito treinadas para o fazer
sulcar a terra com a profundidade requerida. Era esta uma técnica muito apurada
por gerações e gerações de camponeses, transmitida através das famílias. Era
uma técnica que requeria uma perícia particular, aprendida por tradição
familiar; era uma técnica que não se coadunava com a impreparação de
trabalhadores assalariados desprovidos do treino minucioso requerido pelo
tradicional arado. Aqui, no Sul, a lavra da terra era um encargo da família,
iniciada nas técnicas antigas; no Norte, a família também contava, mas a
charrua facilitava a contratação de leigos desconhecedores dos segredos que
presidiam à condução hábil e eficaz de um arado.
Não admira, pois, que a rotação trienal
das culturas, a revolução agrícola que aumentou exponencialmente a
produtividade da terra, tenha desde cedo sido introduzida e implementada no
Norte, enquanto no Sul se prolongava a rotineira rotação bianual: metade dos
solos permanecia todos os anos em pousio, um método primitivo de regenerar a
terra. No Norte, o pousio afectava apenas um terço das terras aráveis, e os
camponeses nortenhos não tardaram a descobrir que a plantação de forragens para
o gado proporcionava uma dupla vantagem: tais plantações eram mais eficazes do
ponto de vista da regeneração do solo, ao mesmo tempo que forneciam farto
alimento para os gados. O Sul ficou para trás e continuou a ficar para trás: a
revolução agrícola do século XVII-XVIII, de que a Inglaterra foi pioneira,
viabilizada pela delimitação física (“enclosures”) da propriedade de
cada um, corroeu ou mesmo destruiu a coesão da comunidade rural das aldeias,
com as suas regras e preceitos, abrindo espaço à livre iniciativa e
criatividade de cada um. O individualismo penetrou no mundo rural. Os terrenos
comunitários não desapareceram, mas viram-se, tal como as pastagens comuns,
drasticamente cerceados.
Para perceber o choque entre duas europas, uma do Norte e outra do Sul, é preciso olhar até onde chega o braço
longo da História. No próximo Conselho Europeu de 23 de Abril, logo veremos se
a União Europeia se deixa abraçar pelo grande urso da História
O Sul só muito superficialmente
partilhou da revolução agrícola do século XVII-XVIII, intimamente ligada à
revolução industrial, de que mais uma vez a Inglaterra foi a pioneira. A
transformação do mundo rural libertou mão-de-obra para as novas manufacturas e
as novíssimas fábricas. Em Portugal, no século XIX, o sistemático deficit cerealífero
foi uma constante aflição dos governantes: o Alentejo latifundiário não
produzia pão suficiente. Salazar sonhou com a auto-suficiência cerealífera de
Portugal, elegendo – sem nenhuma originalidade – o Alentejo como o
grande celeiro nacional. Até que se percebeu, há não tanto tempo como isso, que
o Alentejo, além da tradicional cortiça, era uma terra de vinho e azeite. Tendo
ficado para trás na agricultura, Portugal também ficou para trás na indústria
em geral. Nunca tivemos, verdadeiramente, uma revolução industrial: passámos
(quase) directamente da agricultura para os serviços.
Na UE, a cisão Norte/Sul, patente nas
crises de 2007-8 e na actual tremenda crise do coronavírus, não deriva da
petulância “repugnante” do ministro holandês; nem da falta de caridade da
Senhora Merkel. Tal cisão tem raízes ancestrais e, de certo modo, naturais.
Para perceber o choque entre duas Europas, uma do Norte e outra do Sul, é
preciso olhar até onde chega o braço longo da História. No próximo Conselho
Europeu de 23 de Abril, logo veremos se a União Europeia se deixa abraçar pelo
grande urso da História.
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